Criatividade para fazer da crise oportunidade

Economia criativa floresce durante e após a pandemia e se destaca com microempreendedores das comunidades periféricas a partir da necessidade de renda e trabalho

Por Carolina Scorce

Crédito: Shutterstock

Capital intelectual e cultura para gerar trabalho e renda: a economia criativa, que abarca designer, produtores culturais, arquitetos, pesquisadores e influenciadores, entre tantas outras profissões, é responsável por 3% do PIB brasileiro, num mercado que chega a empregar cerca de 43 milhões de pessoas, segundo o Ministério do Trabalho. Com a explosão do digital, intensificada com a pandemia, essa economia tem ganhado novos contornos e oportunidades de negócios e atraído milhares de pessoas para faturarem como criadores de conteúdo.


Pode parecer uma ocupação com definição vaga, mas nem tanto. O setor se impulsiona, sobretudo, à medida que comunidades e países se veem diante de crises econômicas e do desemprego. Foi assim na Austrália, onde a categoria foi criada, e no Reino Unido, quando o governo buscou no incentivo cultural e criativo a solução para a perda de empregos. No Brasil, país que se industrializou tardiamente e se descentralizou rápido demais, a economia criativa parece um caminho natural, ainda mais quando se leva em conta a capacidade do brasileiro de empreender e ser criativo nos momentos em que fazer qualquer coisa pode parecer desvantajoso.


No primeiro trimestre do ano passado, a taxa de desemprego no País bateu o recorde da série histórica do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e ficou em 14,7%. Ou seja, mais de 15 milhões de brasileiros sem nenhuma renda, nem mesmo bico ou trabalho informal. De março de 2020 a maio do ano passado, período mais intenso da pandemia, quando ainda não havia vacinação em massa contra a Covid 19, pelo menos dois milhões de pessoas perderam seus empregos.


A tendência é entender a economia criativa como aceleradora de outros setores. Se a indústria têxtil, por si só, não cresce, novos modelos de negócio criados na moda por estilistas, criadores, vendedores podem fazer o setor girar mais rápido e em outras direções, por exemplo. Com a pandemia, no entanto, e o encolhimento de investimentos, notadamente no mundo off-line, o foco criativo foi concentrado no digital, e foi a partir daí que se desenvolveu o segmento de maior ascensão quando se imagina o capital intelectual e de conteúdo: a creator economy.


Essa economia está focada em pessoas que criam conteúdo, essencialmente. Não é arte, startups ou arquitetura. E sim pessoas que criam conteúdo na internet, especialmente nas redes sociais, e que geram comunidades e oportunidades de negócio em torno disso.


O surgimento da creator economy data da década de 1990. Contudo, se intensifica, efetivamente, com a pandemia e agora, no período posterior, com o mapeamento de novas tendências. “Foi um movimento global de pessoas que ficaram sem trabalho, não tinham outra renda. Ou porque entenderam que, na pandemia, muito do consumo se voltou para o digital e elas precisavam estar ali também. E uma das formas de fazer isso é através do conteúdo”, afirma a cofundadora e CCO da YouPix, Bia Granja. O creator, portanto, poderia ir desde o personal trainer que fez lives no Instagram para auferir renda porque não podia treinar presencialmente com os alunos até o COO de uma empresa que entende que a influência é uma competência que precisa ter. “Antes, o creator ou o influenciador, como o conhecíamos, era uma pessoa blogueirinha. Agora não. Agora é literalmente qualquer pessoa”, afirma Bia.


A diferença fundamental dos creators para pessoas que, simplesmente, postam conteúdo nas redes, sobre cujos temas são experts é, justamente, a possibilidade de fazer negócio com isso, ou seja, ganhar dinheiro. “Economia passa por capital. Quando entendemos essa nova forma de fazer negócio, precisamos entender que tipo de dinheiro circula ali e vemos uma coisa muito boa: diferentemente do marketing de influência, cuja relação passa essencialmente pelas marcas e lógica da publicidade, o creator é empreendedor. O influenciador continuará a existir, mas nasce aqui uma linha paralela muito interessante com novas oportunidades, tanto para quem cria quanto para quem fornece ferramentas e instrumentos para esses empreendedores”, diz a COO da YouPix.


Recentemente, a empresa lançou, com a Brunch, agência que cuida do negócio de criadores de conteúdo e de marcas, a pesquisa Creators e Negócios, e conseguiu mapear o nível de profissionalização no qual o setor está.


Parte desses criadores de conteúdo é um tipo novo que nasceu como exata consequência da crise econômica intensificada pela pandemia: é o giginfluenciador. O termo gig, em inglês, é usado para nomear aquilo que chamamos como bico. “São pessoas que tinham profissão, um emprego, que se comunicam bem, tinham uma quantidade determinada de seguidores e começaram a pegar uns jobs de influenciador ocasional, com valores baixos, muito abaixo daquilo que vemos o influenciador tal como conhecemos praticar”, explica Bia.


Só a pandemia, segundo aponta a pesquisa, possibilitou que esse tipo de economia criativa explodisse e ganhasse escala, com foco 100% no digital. E a quantidade de criadores que usam como única fonte de renda não é pequena.

Grana Preta

Em 2018, a jornalista Amanda Dias lançou uma página onde comentava economia e finanças. Aos poucos, percebeu que a maior parte dos leitores eram trabalhadores precarizados e freelancers. Foi quando decidiu falar mais sobre empreendedorismo. A página funcionava como hobby e nem mesmo ela acreditava que o seu conhecimento aplicado em plataforma digital poderia ser um negócio. “Montei reserva de emergência e colchão financeiro de longo prazo e passei a investir mais em cursos e palestras, conhecidos como infoprodutos. Mas foi quando conheci a Brunch, minha agência atual, que entendi que eu era criadora de conteúdo e profissionalizei esse trabalho”, explica Amanda, que, agora, concentra o seu conteúdo no perfil Grana Preta, onde fala especialmente sobre empreendedorismo para pessoas negras.

“Quando comecei a ter visibilidade, percebi que não dava para fazer tudo sozinha: planejar, escrever, criar as peças, gravar vídeos, editar, responder comentários, analisar as métricas e ainda garantir que todo e-mail com contatos para trabalhos remunerados fosse respondido a tempo. Mas a gota d’água veio quando fui contatada por grande empresa do setor financeiro. Me pediram orçamento e montei com base no preço da minha hora como jornalista. O retorno do cliente foi que meu orçamento foi tão abaixo que gerou ruído sobre a qualidade do meu trabalho e acabei não sendo chamada para o job. Aí me dei conta de que os métodos de precificação são diferentes e precisava de alguém que entendesse desse mercado e do valor da minha marca”, afirma a empreendedora.

Amanda, do Grana Preta: “Fiz vídeo sobre inflação e compartilhei vídeo de jornalista branca sobre o mesmo tema; meu sofreu uma série de comentários negativos”

No ano passado, creators brancos representavam 67,5% da comunidade. Este ano, são 63,1%. Não à toa, 60,5% dos creators que responderam à pesquisa não consideram o mercado de marketing de influência inclusivo. Amanda nota diferença na velocidade de crescimento em relação ao tempo de influenciadores brancos que, segundo sua percepção, viralizam mais rápido. “Assim como as pessoas tendem a validar mais o que é dito por uma pessoa branca. Eu mesma já testei isso no meu conteúdo. Fiz um vídeo falando sobre inflação e, na semana seguinte, compartilhei um vídeo de outra jornalista, branca, falando sobre o mesmo tema. O meu vídeo sofreu uma série de comentários negativos e me enquadraram em um espectro político em que não atuo. Já no segundo vídeo, não houve ataques, apenas pessoas reagindo aos fatos sem julgamento”, lembra.

Aplacar desigualdades e gerar oportunidades tem sido meta da economia criativa em todos os campos. Fora das redes sociais, por meio da cultura produzida nos territórios urbanos marginalizados, o setor segue se desenvolvendo como ecossistema.

O Colmeia Tiradentes Coworking, empresa nativa da Cidade Tiradentes, bairro do extremo sul da cidade de São Paulo (SP), é um dos primeiros coworkings periféricos da capital. Surgiu a partir de chamada pública da prefeitura de São Paulo. O projeto de Carlos Ronchi e Rúbia Mara não foi aprovado e eles decidiram abrir as portas por conta própria. “O evento inaugural do Colmeia foi o Verão Interativo, em fevereiro de 2020. Era o terceiro fórum de economia criativa na Cidade Tiradentes. A ideia era trazer agentes do centro para cá, porque o bairro fica muito afastado de tudo. Trouxemos o Insper, jornalistas da Globo. Muita gente. Foi um momento muito importante para a cidade de São Paulo porque, uma semana depois, teve o lockdown”, recorda Ronchi.

Colmeia Tiradentes Coworking: iniciativa da economia criativa foi envolvida com a entrega de cestas no lockdown (Crédito: Divulgação)

Com o fechamento do comércio, responsável por grande parte da circulação de dinheiro na periferia, os planos iniciais de Ronchi e Rúbia foram frustrados. Foi quando toda a rede envolvida no evento do Verão Interativo acionou a dupla para trabalhar no escoamento de cestas básicas tanto para doação quanto para compra muito abaixo do valor de mercado e, com isso, repassar à comunidade comida de qualidade e barata. O trabalho com as cestas de alimentos na Cidade Tiradentes veio da urgência criada pelo isolamento social, e se deu graças à rede que já se articulava naquele momento em torno da economia criativa naquele território, a partir do conhecimento dos sócios sobre potencialidades e necessidades da região.

No entanto, a atividade principal do Colmeia na economia criativa é o agenciamento de músicos do funk. “Entendo o funk como a única economia criativa verdadeiramente da periferia, de forma pujante. Os artistas permanecem na periferia, todas as produtoras de funk estão na periferia”, explica Ronchi. Remodelar o negócio de um funkeiro para o mercado, quando se fala de negócios da periferia, inclui uma série de especificidades, como trabalhar com os músicos sobre educação financeira, já que eles terão de lidar com alto montante de dinheiro em curto período de trabalho. “O funk dá outra perspectiva de negócio. Você fala com um jovem sem perspectiva nenhuma e esse mesmo jovem fala: ‘Não, vai acontecer. Vou estudar e vou fazer acontecer’, e acontece. No começo, foi um choque para a gente.”

Ronchi, do Colmeia Tiradentes: “Entendo o funk como a única economia criativa verdadeiramente da periferia”

Mas, uma das maiores dificuldades do negócio do Colmeia não tem a ver com o que é criado na periferia, e sim o comportamento de agências, produtoras, mídias e outras empresas que ainda têm muito preconceito com o universo do funk. “O funk é muito autêntico. Não só nas letras, mas no dia a dia, e isso choca. Fazemos um trabalho de formiguinha nas duas pontas”, explica Ronchi, que agencia cerca de seis projetos de funk.

O professor do Insper e especialista em desenvolvimento de negócios, Daniel Cavaretti, diz que um dos motivos pelos quais as grandes empresas sejam investidoras nas periferias é o fato de essas mesmas empresas tentarem replicar modelos de negócio criados para populações e espaços muito distintos da realidade das periferias. “O capital humano e cultural desses espaços é enorme. A produção é muito pujante, mas nem sempre as empresas sabem aproveitar esse potencial porque estão muito distanciadas desse universo. Novas tecnologias ajudam a aproximar os dois mundos e, aos poucos, vamos derrubar essas barreiras”, afirma Cavaretti, que é também o criador do G10 Favela, evento que faz conexão entre criadores dos territórios e possíveis investidores.

Cavaretti, do G10 Favela: “A produção é pujante, mas nem sempre empresas sabem aproveitar esse potencial”
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